Bruno Baptista (KTM 690 Enduro R): A viagem que me marcou de uma forma muito vincada, foi uma viagem que fiz com uns amigos a Marrocos. Nesta viagem de 12 dias propusemo-nos fazer cerca de 3700 km, e fazer algumas pistas por Marrocos. Á data tínhamos todos Maxi-Trails, foi com estas que tivemos varias aventuras, em especial, no dia que fizemos o Cirque du Jaffar entre outras pistas e que, devido ao tipo de mota que tínhamos, se revelou um desafio, realmente marcante.
Sergio Gomes (KTM 500 EXC-F): Já tinha rolado em Marrocos 4 vezes antes, com a BMW 1200GS, por alcatrão. Tinha comprado a GS nova em 2005 depois de ver o Charlie e o Ewan no Long Way Round. Desta vez, em 2015, decidi explorar o Atlas e o deserto para lá destas montanhas, em plano fora de estrada. Moro em Londres e o meu amigo Ricardo Correia (também conhecido como Ricky) nesse ano morava em Lisboa. Combinámos um rendez-vous em Sevilha para trocarmos de pneus para os TKC80 antes de entrarmos em Marrocos. Passámos a primeira semana a explorar trilhos no Altas antes de enfrentarmos o Sahara. Era ele que nos atormentava porque sabíamos que as GS eram pesadas e nenhum de nós tinha experiência em areia. Mas nós tínhamos um plano. E então, quando chegámos a Merzouga passámos uma tarde a treinar no início das dunas, onde a estrada acaba e a areia começa. Baixámos a pressão dos pneus até 1bar. A esta pressão os TKC80 espalmam o que aumenta dramaticamente a estabilidade da mota na areia. Passámos então a tarde inteira a treinar, a entrar e sair de uma duna. Rapidamente descobrimos que para não cairmos da mota teríamos de acelerar nos momentos certos, ao contrário da voz do instinto que nos dizia para abrandar quando se estava quase a cair! Acabámos o dia confiantes e sentimo-nos preparados para os próximos 2 dias de deserto. O dia seguinte foi dos dias mais intensos e extraordinários que já tive de motociclismo. Deixamos a última civilização para trás, a sul the Merzouga, e seguimos por um caminho de terra batida que por imensos quilómetros entrava e saía pelo leito de um rio seco. Aqui a areia ainda só aparecia em poças pequenas, fáceis de navegar. Sabíamos que mais há frente iríamos ter de atravessar um rio chamado Rheris. Ainda em Merzouga já tínhamos ouvido falar deste rio e de histórias de outras motas que nos dias anteriores não tinham conseguido atravessar e que tiveram de voltar para trás. Quando alcançamos o tal rio havia muita água e muita lama, demasiada para arrevessarmos com as motas. Não tive duvidas de que ajuda iria chegar de algum lado, e com ela provavelmente alguma reviravolta inesperada. ‘Prepare for the worst, and hope for the best.’ Ora a parte do ‘prepare for the worst’ já nos tínhamos feito! Ali esperámos, até que apareceram 3 rapazes marroquinos e propuseram atravessar-nos as nossas motas na caixa aberta de um Land Rover Defender por €10 por cada mota. “D’accord monsieur!” E metemos mãos há obra a carregar a primeira GS para cima do defender. Já com uma mota do lado de lá do rio, o defender avariou-se. Ali passámos horas enquanto os marroquinos tentavam solucionar o problema. Nisto passaram 3 Land Cruises novos, em caravana. Atravessaram o rio e pararam ao nosso lado. As portas abriram-se e os passageiros saíram todos e começaram a tirar fotografias ao nosso infortúnio. Eram quase todos marroquinos, apenas um dos condutores era espanhol. O espanhol perguntou-nos onde iríamos dormir naquela noite e dissemos que estávamos a apontar a uma povoação pequena uns 50km mais há frente chamada Tafraoute Sidi Ali. Ao qual ele respondeu que também ali iriam todos pernoitar num Kasbah gerido por um português. Explicou também que os 50km até lá eram todos por areia mas que valia a pena porque ali serviam cerveja, gin tónico e vinho tinto. Não somos alcoólicos mas haviam já 8 dias que só bebíamos chá de menta. Dissemos de imediato, quase em couro, que seria ali mesmo que também iríamos dormir. O espanhol concordou de nos levar as malas nos Land Cruises, para aliviar peso às GS. Deu-nos um cartão de visita do tal Kasbah e seguiram. Como no deserto não há moradas, o cartão de visita tinha apenas as coordenadas GPS do Kasbah. Era tudo o que precisávamos mas uma das GS estava ainda do outro lado do rio. Com o passar das horas os marroquinos lá conseguiram desempanar o defender. Apressámos-los a buscar a outra mota e já com as duas motas do lado de cá do rio e tudo apostos inserimos então as coordenadas do Kasbah no nosso GPS. O aparelho que tínhamos era antigo e só nos dava duas informações básicas, a distância até ao ponto e uma agulha com a direção. Tínhamos 2 horas de luz até ao por do sol para fazer 50km, por areia. Para além da roupa que tínhamos vestida tínhamos ficado também com as nossas carteiras e os passaportes, que não serviam para nada no deserto. Não tínhamos nem sacos cama nem mais nada. Lembro-me vividamente do que senti quando levantei a cabeça do GPS e olhei para o deserto na direção da agulha. Medo! Mas também euforia, “bora lá, foi para isto que viemos!” E assim nos fizemos à areia, de pneus meios vazios e com a faca nos dentes. Caímos muitas vezes ao início mas Km a Km o medo começou-se a transformar em satisfação pois estávamos a conseguir. O peso da GS é quase todo concentrado na frente e isso sentia-se muito a rolar na areia. Por muito que me chegasse a traz a roda da frente tentava sempre enterrar-se. Era preciso enrolar punho, muito punho para ela finalmente vir há superfície. A velocidade necessária para conseguir navegar a areia era absurda, e francamente assustadora. Uma queda ali teria aleijado! Com a noite a aproximar-se não tínhamos outra opção se não continuar com aquela loucura. Havia alturas em que passávamos por poças de areia Fech Fech, só nos apercebíamos já dentro delas com pó pelo joelho. Outras vezes já quase a cair, e era preciso enrolar ainda mais punho. Foram momentos de êxtase e de susto constate, em proporções iguais. Chegámos à tal povoação já o sol se tinha posto. Estávamos exaustos. Embora tivéssemos chegado, e já se começasse a ver casas, o GPS ainda nos estava a dar mais 7km. Aproximou-se uma motorizada e o rapaz arranhava um pouco de francês. Perguntámos-lhe onde ficava o Kasbah Maraboute, do tal português. Apontou para uma luzinha que pulsava muito ao longe no horizonte já escuro e disse que era ali naquela luz. O Ricky pergunto sem hesitação “o quê mais 7km de areia!” O rapaz então explicou que não havia mais areia, e que o que estávamos a ver entre nós e o Kasbah era um lago antigo seco e que podíamos navegar os 7km em linha reta até à tal luz. “Que alívio!” Fizemo-nos ao lago já era de noite. Durante aqueles 7km pensava “será que têm Sagres ou Super Bock! Bem se calhar vou já ao Gin Tónico!” A antecipação de chegar era palpável, quando de repente apareceram mais dunas e mais areia. Não queríamos acreditar. Estávamos a 500m da tal luz. Como seria possível! Parámos para pensar. Até pensar era já um esforço. Estávamos desidratados e já sem energia, modo de sobrevivência. O Ricky propôs irmos o resto a pé e virmos buscar as motas de manhã. Enquanto debatíamos a ideia, apareceu um velhote de turbante e com uma lanterna a gritar do topo de uma duna “ici Monsieur, ici…” Claramente sabia de nós. Lá nos apontou um caminho à volta das dunas e escoltou-nos ate ao Kasbah. Apareceu o espanhol, já bem alegre pois tinham chegado às 4pm e ainda não tinham parado de beber. Enquanto explicávamos a peripécia aproximou-se outro indivíduo e disse em português muito acolhedor “boa noite!” O instinto do Ricky foi mais forte que ele e abraçou o indivíduo sem sequer se apresentar primeiro. Chamava-se Cindo e era o dono do kasbah, um verdadeiro anfitrião. Nessa noite bebemos cerveja e gin tónico, comemos feijoada à transmontana, vinho tinto, salada de frutas e pastel de nata, e tudo isto ao som de tambores e percussão marroquina. Do dia para a noite não poderíamos ter tido um contraste maior. Um verdadeiro oásis no meio do deserto. Este dia foi dos mais memoráveis dias de motociclismo que já tive, e resultou em 3 coisas. Vincou ainda mais a minha amizade pelo Ricky pelo momento de sobrevivência que tivemos, fiquei viciado no off-road, e decidi naquela noite que quando chegasse a casa iria comprar uma mota leve e própria para aquele tipo de terreno. A KTM 500 EXC-F.
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